Dulce Pontes: "Quero cantar alto enquanto puder. quando for velha já não posso"
A mulher que há 46 anos nasceu no Montijo, parece ter regressado à infância. Não, é mesmo assim, uma questão de feitio. Não é tão alta como parece quando está em palco, cabelos longos, roupa simples e confortável. Mais parece uma miúda, traquina, cheia de sonhos, nada preocupada com aparências e que trata por tu ao primeiro contacto. Repete que o público português é o seu primeiro público, desde o primeiro dia, dos quais o mais visível foi aquele em que ganhou o Festival RTP da Canção, em 1991. Um salto para a ribalta que não foi tão alto como parece, só lançou o álbum Lusitana, que incluía a canção vencedora, Lusitana Paixão, um ano depois. Confessa, agora, que só gostava de três temas e terá sido a primeira vez em que fez cedências na carreira. Iniciada aos 19, para substituir Dora no musical Enfim Sós. Canta, dança, compõe, toca e produz álbuns que incluem diferentes géneros musicais, várias sonoridades e culturas. Cantou com Andrea Bocelli, José Carreras, Joan Manuel Serrat, Caetano Veloso e Daniela Mercury, entre outros. Não o conseguiu com Peter Gabriel apesar da vontade de ambos, por questões burocráticas, em concertos por todo o mundo, sobretudo em Espanha. E recusou a parceria com o Sting. Fez um disco com o compositor italiano Ennio Morricone. Neste ano voltou a Portugal, onde logo no início de janeiro esgotou os dois dias no CCB, depois no Coliseu do Porto. Está a produzir um duplo álbum nas "catacumbas" de Bragança, onde vive há quatro anos com o marido (é a terra dele) e os filhos: o Zé, de 13 anos, e a Maria, de 6.
Está a chegar de onde?
De Bragança.
Que é onde vive, mas a sensação que dá é que emigrou.
Tenho trabalhado mais fora de Portugal, e Espanha é o país número 1, é onde tenho trabalhado com mais continuidade, mas também em Itália, Grécia - coincidentemente os países que entraram crise -, Hungria, Roménia, Turquia. Também estive na América do Sul.
Parece que vive em Espanha.
Sempre vivi em Portugal. Correu o boato de que eu tinha ido viver para Espanha, e não sei porquê. Se calhar, porque há um Montijo, a minha terra de nascimento, também em Espanha. Mudámo-nos há quatro anos para Bragança, o meu marido é de lá, para uma aldeia, Samil, da qual gosto imenso.
Pelo menos esteve afastada do país em relação a concertos: há três anos que não atuava em Portugal e há quatro que não o fazia em Lisboa. Este ano parece ter querido regressar em força.
Comecei a trabalhar com a UAU [produtora de espetáculos]e começaram a surgir mais concertos em Portugal, felizmente. Criou-se a ideia de que eu vivia numa nuvem, inacessível, e isso não é real.
E que, eventualmente, não se sentia muito acarinhada no país.
Ah, não! Por amor da santa! Mas que grande telenovela. Alguma vez ia fazer isso, mesmo que fosse verdade? Eu tenho um carinho enorme do público português, não é que precise dessa prova, muito menos de provar seja o que for a mim própria. O meu primeiro público é o português. Sempre foi.
Os concertos esgotados no CCB são uma das provas?
Foram logo no início de janeiro, 7 e 8. Estava com um bocadinho de receio, confesso, devido ao tal interregno. E, de repente, estava cheio e esgotou nos dois dias. Aconteceu a mesma coisa no Coliseu do Porto, e isso foi ótimo. Mas não precisava dessa prova, tenho constantes manifestações de carinho por parte do público português, através de e--mails, do Facebook, que vai acompanhando e que sabe.
A exposição mediática é que é diferente?
Talvez, não sei. As coisas mudaram muito nos últimos tempos. E eu não trabalho com empresas de marketing. Acho que a arte e o seu percurso devem viver pela obra em si, por aquilo que se faz e não pela questão mediática. O mediatismo não é uma coisa que procure, mas também não o evito, daí estarmos aqui as duas. Não tenho uma empresa de marketing, um manager, focalizo-me no trabalho e em proporcionar ao público uma viagem em cada espetáculo. E, depois, concentro-me na parte conceptual dos discos. Por exemplo, estou há quatro anos numa peregrinação.
Peregrinação?
Peregrinação e que depois transponho para a música. Claro que existe um aspeto espiritual nesse caminho, não sendo necessariamente religioso. A vida é uma peregrinação, e a música tem a capacidade de nos aproximar, tal como uma peregrinação, de alguma coisa que nos transcende.
No fundo é um percurso para se chegar a algum sítio.
Nunca se chega.
No seu caso chega porque vai resultar num disco.
Num duplo álbum e que está praticamente concluído.
Além da cantar, compõe, toca, produz...
Lavo a loiça...
Falemos da música, acaba por fazer de tudo no disco.
Sim, com a ajuda de muita gente. Tenho músicos fantásticos e trabalho muito com o Tó Pereira da Silva, que adoro. E é nesse trabalho que estou focalizada. Mas, se calhar, essa ideia do afastamento tem alguma culpa da minha parte porque não acompanhei a mudança. E talvez nem me interessa. Não sei o que é que isso implica.
Refere-se a fazer cedências?
Nunca fiz. E tem sido a minha luta ao longo de 27 anos de carreira. Gravar a tal cançãozinha que dá jeito à editora A, B, C ou D ou ao letrista, por causa de receber os direitos disto ou daquilo? Não. É uma falta de respeito para com a música.
Sente que esse comportamento tem consequências?
A minha luta tem sido sempre respeitar o público, porque se continuo a cantar - só parei um ano, quando fui mãe pela primeira vez - devo-o ao público e a mais ninguém. É quem nos faz, acompanha, independentemente de haver campanhas ou produções de marketing. É o público que vai à procura dos discos, que tem a abertura e me dá liberdade para interpretar seja o que for ao vivo, mesmo que não conheça, e isso é maravilhoso.
O afastamento dos palcos nacionais não foi por vontade própria?
Não, não foi. Surgiu pouquíssima coisa e o que surgiu foi em cima de hora. Já existiam marcações e eu não posso deixar de responder a quem me convida - é o meu ganha-pão -, à espera que aconteça alguma coisa em Portugal. Felizmente agora está a acontecer. Mas nunca iria fazer uma coisa dessas. Isso era dar um tiro no pé. E digo isto com mágoa, não é em relação ao público, porque eu sei que tenho público em Portugal. A questão são os meios que nos levam até ao público, o que felizmente está a ser ultrapassado. Mas se dependesse de Portugal, há muitos anos que eu já não cantava.
Mas, segundo percebi, essa ausência também tem que ver com quem a representava e editava.
Em janeiro surgiu o convite da UAU, gosto imenso da equipa toda, trabalham com a maior transparência, que é como gosto. Com o tempo aprendemos. Entretanto, libertei-me de alguns contratos, nomeadamente com editoras. Criei a minha editora [a Ondeia Música] e que funciona também como agência de espetáculos. Alcancei a minha liberdade. E, se calhar, essa liberdade, essa independência, aqui não é bem-vista. Fora de Portugal não há problema.
Essa independência também significa não estar colada a um estilo: fado, folclore, ópera, jazz, canção popular. Define-se como uma artista de world music.
Gosto de ter essa liberdade! Se tenho essa possibilidade... não estar enclausurada num género musical. Muito embora, lá fora, sendo portuguesa, tenha a marca do fado. Não há nada a fazer, por muito que explique a distinção entre fado, folclore e música original. Consigo entender isso porque foi o género que a Amália levou além-fronteiras, muito embora também cantasse folclore e gravasse em inglês, em napolitano, em castelhano...
Não gosta de ser catalogada só num género musical?
Não é uma questão de não gostar, é que, depois, ficava ali fechadinha. E, assim, tenho possibilidades de me exprimir em diferentes vertentes e com liberdade para compor em diferentes registos e abordagens e, lá está, criar sonoridades que têm uma matriz portuguesa.
Estamos a falar de diferentes géneros musicais, mas também de envolver nos seus trabalhos outros músicos e outras culturas.
E, de repente, é muito giro porque encontram-se paralelos entre o folclore português e o folclore da Argentina, por exemplo. As pessoas pensam que a Argentina é só tango, assim como Espanha é flamenco e Portugal é fado, mas há muitos géneros folclóricos. Músicas tradicionais relacionadas com a terra, com o trabalho e com animais, enfim, dependendo do ponto geográfico em que se está. É como se houvesse uma música-mãe, uma matriz.
Faz uma pesquisa para encontrar esses outros ritmos musicais?
Não. Surgem-me no caminho, nas viagens que faço em trabalho. Por exemplo, a Mariana Carrizo, que é uma copleira [do espanhol coplera, quem diz coplas, quadras] lá das montanhas ao pé de Jujuy, na Argentina. Ouvi-a em Cosquín, num festival de folclore, perto de Córdova, em 2011, e fiquei: Uau! Um canto ancestral. Ela com uma caixa bagualera [instrumento de percussão usado no folclore], que faz lembrar o som do nosso adufe. E, de repente, aquilo misturava perfeitamente com as adufeiras, com alguma coisa das Beiras. É esse tipo de cruzamentos que eu acabo por explorar e depois experimentar.
Já falou na Amália, podemos dizer que é uma segunda Amália?
Não. Não há segunda Amália, não há segunda Edith Piaf, não há segundo Frank Sinatra.
Nasceu para o mundo do espetáculo a cantar coisas de Amália.
Também cantei muita coisa do Zeca Afonso. Então chamem-me Zeca Afonso.
O termo é usado devido sobretudo ao impulso que deu ao fado, ao cantar fados como Canção do Mar, um dos seus maiores êxitos.
O Lágrimas. O fado talvez estivesse esquecido em Portugal, sobretudo nas camadas mais jovens, admito. E foi muito bom ver pessoal novo a aparecer e a gostar, porque a abordagem era diferente. E também Zeca Afonso e o folclore, que não se ouviam.
As canções do Zeca Afonso sempre se ouviram até por ser um cantor de intervenção.
Não se ouvia. Voltando à Canção do Mar, esta fazia parte do Lágrimas [1993/94], depois foi o Caminhos, a Brisa no Coração e o O Primeiro Canto. O Primeiro Canto foi o meu grito do Ipiranga. Gravei o álbum todo às minhas custas.
Porque é que isso aconteceu?
Isso está lá nos recônditos do tempo, essa editora já faliu. São tempos passados. Fiz esse trabalho sem ter editora e depois, por acaso, mostrei-o a um estúdio na Holanda, em Hilversum. O presidente da Universal Europa passou no corredor, ouviu e falou comigo. E pronto! Assinei com a Universal Holanda, não foi com a Universal Portugal.
Um casamento que não durou.
Não durou muito tempo porque, a partir do momento em que começaram a pedir para gravar fados em espanhol, a coisa começou a dar para o torto. Era uma questão cultural. E depois, pensei: "Uma pessoa põe tudo num disco e, de repente, deixa de estar na nossa mão." Por exemplo, se desaparecer de circulação não o podemos repor.
Cantou nas cerimónias de trasladação de Eusébio, na abertura do Euro 2004, na assinatura do Tratado de Lisboa...
Essa preferia não ter ido.
Correu-lhe mal.
Muito mal. Tudo! Desde o tratado propriamente dito. Depois houve problemas técnicos, não tínhamos sistema de monição, não nos ouvíamos uns aos outros. Estava a corda para um lado, os guitarristas para o outro, na maior confusão, não se ouvia absolutamente nada. Aquilo foi um sofrimento!
Por isso, sentiu necessidade de cantar muito alto?
Eu pensei: "O que é que eu vou fazer à minha vida? Porque se não cantar alto, não vão ouvir nada."
Parecia que gritava.
Foi horrível, ainda por cima o tema é superdifícil de cantar. Como diz o Ennio Morricone, é um triplo mortal à retaguarda. Parecia que me ia rebentar a cabeça. Pensei: "Não posso afastar o microfone, que ninguém me vai ouvir em casa; se é para que todas as pessoas que aqui estão me ouvirem, vou ter de cantar o mais alto que conseguir." E a ideia de quem estava presente foi de que tinha corrido muito bem.
Não era a ideia de quem acompanhava pela televisão.
Só podia ter saído horrível - como saiu - para o ar. Se não temos monição, ouvimos só o som que estamos a produzir, e são instrumentos com intensidades e volumes diferentes. Lembro-me de que saí e disse: "Isto foi um desastre! Aqui pode ter resultado mais ou menos, em casa foi um desastre."
Prejudicou-a a nível artístico?
Não, mas pessoalmente gostava de não ter estado nesse tratado. Não tinha ideia do que é aquilo era, devia ter-me informado. E, claro, nunca mais voltar a fazer um direto em televisão sem ter alguém da minha confiança no carro de exteriores e no som.
Mas em alguns espetáculos ao vivo a Dulce tem necessidade de elevar muito a voz...
Depende dos temas.
Não sente, ou não lhe dizem que, às vezes, devia baixar o tom?
Eu quero ir alto enquanto puder, quando for velha já não posso.
É verdade que tem um vozeirão e puxa por esse instrumento.
Tive uma ótima professora de canto, a Maria do Rosário Coelho - a minha Rosarinho, que já não está cá - e, graças a Deus, tenho uma extensão vocal que me permite interpretar diferentes coisas e de diferentes formas. Há coisas que gosto de cantar em murmúrio, há coisas que gosto de cantar mais forte.
Tem feito muitos duetos, sobretudo com músicos internacionais. Alguma vez recusaram fazer um dueto com a Dulce?
Esses encontros acontecem espontaneamente. Mas, sim, houve uma vez em que escrevi uma carta ao Peter Gabriel, para o Focus [álbum que fez em colaboração com o maestro Ennio Morricone]. Ele respondeu e era para o gravar, mas depois a editora inviabilizou, porque o Peter Gabriel queria ficar com os masters [direitos do suporte] para a Real World, a editora dele. E propuseram-me o Sting, que eu neguei.
É uma rapariga "de pelo na venta", como se costuma dizer?
É, porque custou-me tanto! E depois, o Sting não tem nada que ver, timbricamente. É bom cantor, mas o Peter Gabriel naquele tema... ficava uma coisa linda. Ainda por cima, escreveu-me a dizer: "Olá, estou prestes a realizar um sonho." Já se estava a escrever a letra. Era o letrista dele, americano, e, depois, de um momento para o outro: puff!
Gravar com o Ennio Morricone deve ter sido uma emoção.
Foi, e posso dizer que a Universal Holanda não queria gravar o Focus. E o Ennio com os temas à espera. É esse tipo de situações que acabam por amargar, que deixam mágoa. Mas também nos dão calo. Tenho feito cada braço-de-ferro...
Nunca se lembrou de escrever ao Richard Gere a dizer-lhe: "É meu o álbum que levas no filme As Duas Face de Um Crime"?
Aconteceu uma coisa muito engraçada. Ligaram-me para eu ir a Madrid no dia seguinte porque ia lá estar o Richard Gere e era para nos conhecermos, ele tinha essa vontade. Eu também, mas não fui porque tinha um compromisso com uma rádio em Portugal, e não me arrependo. Tinha um compromisso e só não cumpria se estivesse muito doente.
Alguma vez recusou um dueto além do Sting?
Sim, mas não digo com quem, não era português.
Começou a cantar aos 4 anos, aos 7 foi para o Conservatório, dança e toca piano. Foi uma criança-prodígio?
Acho que não. Eu tinha necessidade - sempre tive - de me exprimir, desde muito miúda.
Pensamos em Dulce Pontes em termos de voz, mas, na realidade, toca muito mais teclas.
Tive um grande um apoio dos meus pais, que tiveram a sensibilidade e abertura de me encaminharem para as áreas de que gostava. De dizer, por exemplo, "quem é que te ensinou isso ", e lá estava eu a tocar xilofone. Foi tão giro descobrir que se podiam reproduzir sons.
Essa com que idade foi?
Talvez 6 anos, por aí. E depois comecei com aulas de piano aos 7, com a professora Lígia Serra, depois com aulas de dança. A escrita sempre foi uma coisa que me fascinou. Na escola, aliás, indicaram-me para seguir letras.
Vamos ter coisas publicadas sem ser em pautas ou no registo audiovisual?
Estou a escrever uma peça de teatro já lá vão anos. E, por acaso, já a mostrei a uma das atrizes que queria que a interpretasse.
Já tem o elenco e tudo.
Sim. São duas atrizes, escrevi a pensar nelas.
Podemos saber quem já leu a peça?
É a Graça Lobo, e gostou. Mas até isso dar frutos, até aquilo estar pronto, se calhar, nunca se faz.
Cantar, compor, dançar, em que registo se sente melhor?
Acabo por me exprimir através dessas áreas todas. Quando canto, utilizo o corpo todo. Não consigo estar ali quieta, sossegada, virada para a frente.
Mas disse numa entrevista que "o canto é o aconchego da música".
O canto é mais um instrumento que está ali e que serve como prisma para transmitir uma série de coisas, tem muitas possibilidades. Mas gosto de todas as áreas. Gosto também de compor. Gosto de estar em silêncio, ao pianinho, a tocar. Gosto de escrever. Mas obviamente que tudo se direciona, depois, para o canto.
A partir do momento em que ganhou o Festival da Eurovisão, em 1991, todas as portas se abriram.
Não foi bem assim. O Lusitana só saiu um ano depois, não havia editora que o quisesse gravar, o que para mim foi um choque. E, depois, as pessoas encontravam-me na rua e zangavam-se: "Porque é que não grava?"
Ganha um festival, representa Portugal lá fora e grava o disco?
Foi o primeiro balde de água fria. Passado um ano, lá surgiu a possibilidade de fazer o Lusitana, que é um disco que só tem três temas de que gosto. Lá está, porque tinha de ter temas comerciais e blá-blá-blá, aquela história toda. Depois, em conjunto com o Zé da Ponte e o Guilherme Inês fizemos então o Lágrimas.
A década de 90 foi a década de ouro da sua carreira?
Foi. Depois houve outra vez aquele "Ai! E agora?!" Isso aconteceu antes de O Primeiro Canto. Adeus produtor, adeus editora. Estou sozinha. E agora? Fui chamar esta pessoa, outra, mais uma, músicos que eu fui conhecendo. Queria fazer um álbum diferente, acústico. E depois tive uma série de gente a perguntar porque é que não gravava os meus temas. Não tinha confiança em mim como compositora. Continuo a não ter.
Tem atuado nos países mais atingidos pela crise económica, Itália, Espanha, Grécia, Portugal. Encontra muitas diferenças?
Não, não é diferente de um país para o outro. A Itália está uma lástima, nunca vi tanta gente a dormir na rua, em Roma. As pessoas acabam por munir-se de determinadas coisas para conseguir ultrapassar a situação. Mas ultrapassa-se até que ponto quando falta a comida no prato? Parece que voltámos à Idade Média.
A crise não é só económica.
Não, e tem de haver uma mudança no sistema político. Tem de haver pessoas válidas para irem para a política e ultrapassar isto. Lá está, é uma utopia, se calhar.
Vota ou a descrença na política é tanta que não vota?
O meu voto vai sempre em branco, não há ali nada que me inspire confiança. Nada. Zero.
O que fazer? Portugal é mesmo um país de brandos costumes?
Não, as pessoas, talvez, manifestam-se é de formas diferentes. Também, não sou pela violência, o caminho não é esse. O caminho poderia ser um governo eleito pelo povo com pessoas apartidárias.
"Recusei um encontro com Richard Gere para manter um compromisso com uma rádio"
Fez cinco álbuns nos primeiros dez anos de carreira, depois tem publicado mais raramente.
Depois é de três em três anos, mais ou menos. Este, que se vai chamar Peregrinação, é um duplo álbum com DVD, está a demorar um pouco mais.
Porquê?
Porque sendo subjetivo, tem de ter objetividade, e isso cria uma luta interna, é difícil de explicar.
Quer dizer que ainda não conseguiu a linha de continuidade.
É. É impossível tocar todos os aspetos da emoção humana num álbum duplo, mesmo que ponha lá o máximo de músicas. A nossa paleta de emoções é enorme e, sobretudo, existem emoções relacionadas com esse percurso de peregrinação, com um determinado fim.
Sairá antes do Natal?
Com certeza.
Tem originais da Dulce?
Sim. A Peregrinação divide-se em duas partes: Nudez e Portos de Abrigo. Nudez porque uma peregrinação só se faz em nudez de espírito, de alma, de tudo, o que também se reflete a nível dos arranjos, das composições. Através da música, consegue-se explicar esse percurso e, através da poesia, consegue-se explicar de uma forma muito mais simples. O Portos de Abrigo transmite todas as emoções nesse caminho e é um álbum totalmente em castelhano. O Nudez é totalmente em português. E musiquei vários poemas: Fernando Pessoa, Gastão Neves, além de originais meus, música e letra.
Portanto, há uma maior exposição da Dulce.
Sim. Muito mais nua, digamos assim. Se pudesse fazer um paralelo, seria uma continuação de O Primeiro Canto, de certa forma.
Alguns desses temas já apresentou em palco, que é onde normalmente faz a rodagem?
Já faço isso há alguns anos e gosto de fazer. As interpretações de-senvolvem-se ao vivo, não é dentro de um estúdio. Não interessa o sair bem, interessa sair mesmo de dentro. E isso só se consegue no contacto direto com o público. Não estou a dizer que vou ensaiar em palco, mas gosto de de-senvolver, aprofundar, maturar os temas antes de gravar.
Já lhe aconteceu ter um tema de que gostasse muito e que acabasse por não gravar?
Há sempre temas que ficam de fora. Tinha pensado, para este trabalho, 13 temas para cada álbum, mas já vou em 16 para cada um. Portanto, alguma coisa vai ter de sair fora, no alinhamento final, porque não vai caber. É música a mais.
E está a ser produzido em Portugal ?
Algumas canções foram feitas na Argentina, outras em Madrid, mas , sobretudo, em Portugal, nas minhas catacumbas!
Em Bragança.
Em Samil.
Porque é que foi viver para Bragança?
Fomos lá passar férias e os miúdos adoraram. O meu marido é de lá, de uma aldeia perto, e pensámos: "O que é que estamos a fazer lá em baixo?" E, de um momento para o outro, estávamos lá a viver.
Não será também por isso que tenha menos mediatização?
Não. Eu estava em Setúbal, na altura, e era a mesma coisa.
É uma mudança para continuar?
Não há vontade de regressar seja para onde for, há vontade de permanecer. O que está para vir não sabemos. Não existe o "para sempre".
Existe em relação aos filhos ...
Aos filhos e aos pais. Mas o "para sempre" noutros sentidos não existe. Mesmo.